quinta-feira, 29 de março de 2012

Ah, a hereditariedade...


"Ah Pai, por alguma ironia, como se já não estivéssemos farta dela, lembro sempre de ligar-te lá pro meio da noite, quando já não é mais educado tocar as campainhas telefônicas das casas de outrem, quando já tenho uma desculpa quase que moral para ignorar minha vontade de falar-te. Vai dia e vai hora e penso que em algum momento isso deve sim acontecer. Penso que por um tempo poderíamos conversar sobre aqueles filmes que você viu, que você sabe que eu vi, e sabemos juntos que vimos porque ambos gostamos do diretor. Esse diretor tem um estilo que muito nos agrada, algo da linguagem que usa, transmite, sei lá, a solidão dos personagens. Sei que falaríamos algo como isso. Ou sobre aquele CD que você me deu no Natal passado. Mandou o moço entregar aqui em casa, com um cartão tão emocionado quanto os cartões de pessoas distantes e queridas e arrependidas devem ser. “Neste ano...” e por aí vão palavras que muito prometem, e são verdadeiras, mas, Ei!, são só palavras. Não cheguei a comentar contigo, pois afinal só nos vimos uma vez depois disso, mas eu gostei bastante do CD. Embora você saiba disso, nem preciso falar, você já sabia de antemão. Sabe, talvez seja justamente essa compreensão antecipada entre nós que nos estimule tanto a poupar palavras. E contatos. E momentos. E, no entanto, tenho palavras sobrando, ensaiadas em longo prazo na minha cabeça, para gastar na terapia que um dia irei fazer, quando criar coragem, quando criar dinheiro, quando criar prioridades na vida atrapalhada que tenho. Como poderia eu ter uma opinião sobre como nos tratamos? Espelho meu, como poderia eu? E naquele telefonema falaríamos sobre o filme, sobre o CD, e em algum ponto costurado nessas entrelinhas que nós dois sabemos bem ler, toda aquela vaga infância, todo o crescer, os longos anos que hoje passam pela minha cabeça como imagens esfumaçadas lentamente desaparecendo, tudo isso seria entendido, explicado, perdoado, consertado, vivido. Amanhã, sim, amanhã eu te ligo."

quarta-feira, 28 de março de 2012

Das cenas inesquecíveis - Lost in Translation


Sofia Coppola é o tipo de diretora e roteirista que ou você adora ou odeia. Eu me encaixo no primeiro grupo. Há algo de melancólico nos filmes dela, talvez algo embutido entre o silêncio que paira entre uma fala e outra, ou na música que embala as paisagens urbanas... esse algo melancólico me encanta. A diretora consegue captar o mundo solitário de um indivíduo, seja ele um ator de cinema decadente no meio de uma crise pessoal ou uma moça na flor da juventude com um sentimento aterrador de inadequação e insatisfação. Porque o indivíduo está mesmo em si quando está em silêncio. É ali que pensa, que sofre, que pondera, medita... ou que não quer pensar em nada, simplesmente. De alguma forma bizarra a diretora consegue captar isso, e transforma em algo quase poético em suas cenas.
A cena a seguir é do filme Lost in Translation, ou, no Brasil, Encontros e Desencontros. Nessa cena há o "encontro" final dos dois, que apenas fecha o enorme "desencontro" entre eles e consigo mesmos. Pode parecer lírico demais, até piegas, mas um pouco de cada um de nós se identifica com os elementos dessa cena. De quebra, a música ajuda muito, o som abafado do Jesus and Mary Chain com Just Like Honey. Liiiindo.