"Ah Pai, por alguma ironia, como se já não estivéssemos farta dela,
lembro sempre de ligar-te lá pro meio da noite, quando já não é mais educado
tocar as campainhas telefônicas das casas de outrem, quando já tenho uma
desculpa quase que moral para ignorar minha vontade de falar-te. Vai dia e vai
hora e penso que em algum momento isso deve sim acontecer. Penso que por um
tempo poderíamos conversar sobre aqueles filmes que você viu, que você sabe que
eu vi, e sabemos juntos que vimos porque ambos gostamos do diretor. Esse
diretor tem um estilo que muito nos agrada, algo da linguagem que usa,
transmite, sei lá, a solidão dos personagens. Sei que falaríamos algo como
isso. Ou sobre aquele CD que você me deu no Natal passado. Mandou o moço
entregar aqui em casa, com um cartão tão emocionado quanto os cartões de
pessoas distantes e queridas e arrependidas devem ser. “Neste ano...” e por aí
vão palavras que muito prometem, e são verdadeiras, mas, Ei!, são só palavras. Não
cheguei a comentar contigo, pois afinal só nos vimos uma vez depois disso, mas
eu gostei bastante do CD. Embora você saiba disso, nem preciso falar, você já
sabia de antemão. Sabe, talvez seja justamente essa compreensão antecipada
entre nós que nos estimule tanto a poupar palavras. E contatos. E momentos. E,
no entanto, tenho palavras sobrando, ensaiadas em longo prazo na minha cabeça,
para gastar na terapia que um dia irei fazer, quando criar coragem, quando
criar dinheiro, quando criar prioridades na vida atrapalhada que tenho. Como poderia
eu ter uma opinião sobre como nos tratamos? Espelho meu, como poderia eu? E
naquele telefonema falaríamos sobre o filme, sobre o CD, e em algum ponto
costurado nessas entrelinhas que nós dois sabemos bem ler, toda aquela vaga
infância, todo o crescer, os longos anos que hoje passam pela minha cabeça como
imagens esfumaçadas lentamente desaparecendo, tudo isso seria entendido,
explicado, perdoado, consertado, vivido. Amanhã, sim, amanhã eu te ligo."
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